George de la Tour
"Por que razão
devo agir moralmente?" é, pois, uma pergunta a respeito de algo que
normalmente é admitido como ponto de partida. Essas perguntas são incómodas.
Alguns filósofos acharam esta pergunta tão desconcertante que a rejeitaram por
ser logicamente imprópria, por ser uma tentativa de perguntar algo a que não se
pode dar uma resposta apropriada.
Uma razão para esta
rejeição reside na afirmação de que os nossos princípios éticos são, por
definição, os princípios que consideramos imperiosos. Significa isto que
quaisquer princípios imperiosos para uma determinada pessoa, são
necessariamente os princípios éticos dessa pessoa; e uma pessoa que aceita como
princípio ético dever dar a sua riqueza para ajudar os pobres tem, por
definição, de ter decidido dar a sua riqueza. Nesta definição da ética, a
partir do momento em que uma pessoa toma uma decisão ética, nenhuma questão
ética adicional pode surgir. Daí que seja impossível dar sentido à pergunta
"Por que razão devo agir moralmente?".
Poder-se-ia pensar
que uma boa razão para aceitar esta definição da ética baseada no que é
imperioso é que nos permite rejeitar, como desprovida de sentido, uma questão
que de outro modo seria incómoda. Contudo, a adopção desta definição não pode
resolver problemas reais porque leva a dificuldades proporcionalmente maiores
em estabelecer uma conclusão ética. Tomemos, por exemplo, a conclusão de que os
ricos devem ajudar os pobres. (...) porque partimos do princípio de que (...) a universalizabilidade dos juízos éticos exige que não pensemos
apenas nos nossos próprios interesses, levando-nos a adoptar um ponto de vista
no qual temos de considerar igualmente os interesses de todos os que são
afectados pelas nossas acções. Não podemos defender que um juízo ético tem de
ser universalizável e
ao mesmo tempo definir os princípios
éticos de uma pessoa como os princípios, quaisquer que eles sejam, que essa
pessoa considera imperiosos — pois o que aconteceria se eu considerasse
imperioso um princípio não universal como "Devo fazer o que me beneficia"?
Se definirmos os princípios éticos como quaisquer princípios que tomemos por
imperiosos, nesse caso qualquer coisa pode contar como princípio ético, porque
podemos considerar imperioso qualquer princípio. Assim, o que ganhamos por
podermos rejeitar a pergunta "Por que razão devo agir moralmente?"
perdemos ao sermos incapazes de usar a universalizabilidade dos juízos éticos —
ou qualquer outra característica da ética — para argumentar em favor de certas
conclusões sobre o que é moralmente correcto. Considerar que a ética implica
necessariamente, em certo sentido, um ponto de vista universal é uma forma mais
natural e menos confusa de abordar estas questões.
Outros filósofos
rejeitaram a questão "Por que razão devo agir moralmente?" por outros
motivos. Pensam que deve ser rejeitada pela mesma razão que nos leva a rejeitar
uma outra questão ("Por que razão devo ser racional?") que, como
"Por que razão devo agir moralmente?", também questiona algo — neste
caso, a racionalidade — que normalmente se pressupõe. A pergunta "Por que
razão devo ser racional?" é de facto logicamente imprópria porque, ao
responder-lhe, estaríamos a dar razões para sermos racionais. Estaríamos a
pressupor a racionalidade na nossa tentativa de justificar a racionalidade. A
justificação resultante da racionalidade seria circular — o que prova não que a
racionalidade careça de uma necessária justificação, mas que não precisa de
justificação, porque não pode inteligivelmente ser questionada, a não ser que
já esteja pressuposta.
Será que "Por
que razão devo agir moralmente?" está na mesma categoria de "Por que
razão devo ser racional?" no sentido em que pressupõe o próprio ponto de
vista que questiona? Estaria, se interpretássemos o "devo" como um
"devo" moral, o que seria absurdo. A partir do momento em que chegamos
à conclusão de que uma acção é moralmente obrigatória, não existem mais
questões morais a que responder. É redundante perguntar por que razão devo
moralmente fazer a acção que moralmente devo fazer.
Não há, porém, a
necessidade de interpretar a pergunta como um pedido de justificação ética da
ética. "Devo" não significa forçosamente "devo,
moralmente". Poderia ser simplesmente uma forma de inquirir das razões
para a acção, sem qualquer especificação quanto à natureza das razões pretendidas.
Queremos por vezes fazer uma pergunta genérica prática, sem qualquer ponto de
vista em particular. Confrontados com uma escolha difícil, pedimos conselho a
um amigo íntimo. Moralmente, diz ele, devias fazer A; mas B era
melhor para os teus interesses, enquanto a etiqueta exige C e
apenas Ddemonstra um verdadeiro sentido de estilo. Esta resposta
pode não nos satisfazer. Pretendemos um conselho sobre qual destes pontos de
vista devemos adoptar. Se fazemos tal pergunta, temos de a fazer de uma posição
de neutralidade relativamente a todos os pontos de vista e não de um
compromisso com qualquer deles.
"Por que razão
devo agir moralmente?" é uma pergunta deste tipo. Se não for possível
fazer perguntas práticas sem pressupor um ponto de vista, somos incapazes de
dizer algo de inteligível acerca das escolhas práticas mais fundamentais. Agir
ou não de acordo com considerações de ética, interesse pessoal, etiqueta ou
estética seria uma escolha "para lá da razão" — em certo sentido, uma
escolha arbitrária. Antes de nos resignarmos a esta conclusão devemos pelo
menos tentar interpretar a questão de tal modo que fazer simplesmente a
pergunta não nos comprometa com qualquer ponto de vista particular.
Podemos agora
formular a pergunta com maior precisão. Trata-se de uma questão acerca do ponto
de vista ético, feita de uma posição exterior a esse ponto de vista. Mas o que
é "o ponto de vista ético"? Afirmei que uma característica distintiva
da ética é que os juízos éticos são universalizáveis. A ética exige que
superemos o nosso ponto de vista pessoal e que adoptemos uma posição semelhante
à do espectador imparcial que adopta um ponto de vista universal.
Dado este conceito
da ética, "Por que razão devo agir moralmente?" é uma pergunta a que
pode responder adequadamente qualquer pessoa que inquira se deve agir apenas em
bases que seriam aceitáveis do ponto de vista universal. Afinal de contas, é
possível agir — e algumas pessoas fazem-no — sem pensar senão nos nossos
interesses pessoais. A pergunta pede razões para ir além do interesse pessoal
na acção e para agir apenas com base em juízos que estamos dispostos a
prescrever universalmente.
Peter Singer, Ética Prática
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