domingo, 2 de fevereiro de 2014

Penso, logo existo




Assim, porque os nossos sentidos nos enganam algumas vezes, eu quis supor que nada há que seja tal como eles o fazem imaginar. E, porque há homens que se enganam ao raciocinar, até nos mais simples temas de geometria, e neles cometem para­logismos, rejeitei como falsas, visto estar sujeito a enganar-me como qualquer outro, todas as razões de que até então me ser­vira nas demonstrações.
Finalmente, considerando que os pensa­mentos que temos quando acordados nos podem ocorrer tam­bém quando dormimos, sem que neste caso nenhum seja verdadeiro, resolvi supor que tudo o que até então encontrara acolhimento no meu espírito não era mais verdadeiro que as ilusões dos meus sonhos. Mas, logo em seguida, notei que, enquanto assim queria pensar que tudo era falso, eu, que assim o pensava, necessariamente era alguma cousa. E notando que esta verdade - eu penso, logo existoera tão firme e tão certa que todas as extravagantes suposições dos cépticos seriam impo­tentes para a abalar, julguei que a podia aceitar, sem escrúpulo, para primeiro princípio da filosofia que procurava.

Depois, examinando atentamente que cousa eu era, e vendo que podia supor que não tinha corpo e que não havia qualquer mundo ou qualquer lugar onde eu existisse; mas que, apesar disso, não podia admitir que não existia; e que antes, pelo con­trário, por isso mesmo que pensava, ao duvidar da verdade das outras cousas, tinha de admitir como muito evidente e muito certo que existia; ao passo que bastava que tivesse deixado de pensar para não ter já nenhuma razão para crer que existia, ainda que tudo o que tinha imaginado fosse verdadeiro; por isso, compreendi que era uma substância, cuja essência ou natu­reza é apenas o pensamento, que para existir não tem necessi­dade de nenhum lugar nem depende de nenhuma cousa material. De maneira que esse eu, isto é, a alma pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo, mais fácil mesmo de conhecer que este, o qual, embora não existisse, não impediria que ela fosse o que é.    

                                                        
                                                                Descartes, Discurso do Método, Sá da Costa

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