O papel de Deus no sistema cartesiano - aqui
Depois, tendo refletido
que duvidava, e, por consequência, o meu ser não era inteiramente perfeito,
pois claramente via que o conhecer é uma maior perfeição que o duvidar,
lembrei-me de procurar donde me teria vindo o pensamento de alguma cousa de
mais perfeito do que eu era; e conheci com evidência que deveria ter vindo de
alguma natureza que fosse efetivamente mais perfeita.
Não me era difícil
saber donde me teriam vindo os pensamentos que tinha de muitas outras cousas
exteriores a mim, como do céu, da terra, da luz, do calor e de muitas outras,
porque, não notando neles nada de superior a mim, podia admitir que, caso
fossem verdadeiros, dependiam da minha natureza, do que ela tem de perfeito; e
no caso de serem falsos era de mim ainda que dependeriam, vindos do nada, isto
é, do que de imperfeito existe na minha natureza. Mas o mesmo não acontecia já
com a ideia dum ser mais perfeito do que o meu; porque tê-la formado do nada
era manifestamente impossível; e, porque não repugna menos admitir que o mais
perfeito seja uma consequência e uma dependência do menos perfeito do que
admitir que do nada alguma cousa proceda, não podia também aceitar que tivesse
sido criada por mim próprio. De maneira que restava apenas admitir que tivesse
sido posta em mim por um ser cuja natureza fosse verdadeiramente mais perfeita
do que a minha, e que mesmo tivesse em si todas as perfeições que eu poderia
idealizar, isto é, que fosse Deus, para tudo dizer numa palavra.
A isso acrescentei
que, visto conhecer algumas perfeições que não possuía, não era o único ser que
existia (empregarei aqui, se o consentirdes, alguns termos de escolástica), mas
que necessariamente devia existir algum outro mais perfeito, do qual dependesse
e de quem tivesse recebido tudo o que possuía. Porque, se eu fosse o único ser,
independente de qualquer outro, e de mim próprio tivesse recebido todo esse
pouco pelo qual participava do ser perfeito, teria podido dar a mim próprio,
pela mesma razão, todo o muito que reconhecia faltar-me, e ser dessa maneira eu
próprio infinito, imutável, omnisciente, omnipotente, em suma ter todas as
perfeições que atribuía a Deus.
[…]
Depois disso, quis
ainda pensar outras verdades, e, tomando por tema a matéria dos geómetras, a
qual concebia como um corpo contínuo, ou, um espaço indefinidamente extenso em
comprimento, largura e altura ou profundidade, divisível em muitas partes, que podem
ter diversas formas e grandezas, pois os geómetras supõem tudo isto na sua
matéria, revi algumas das suas demonstrações mais simples. E, tendo notado que
essa grande certeza, que todos lhes atribuem, se funda apenas em serem
compreendidas com evidência, segundo a regra por mim há pouco indicada, notei
também que nada existia nelas que me garantisse a existência dos objectos a que
se referem.
Porque, por exemplo,
eu compreendia bem que sendo dado um triângulo, é necessário que os seus três
ângulos sejam iguais a dois ângulos rectos; mas, apesar disso, nada via que me
garantisse que no mundo existe qualquer triângulo. Ao passo que,
voltando a examinar a ideia dum ser perfeito, notava que a existência está
contida nessa ideia, do mesmo modo, ou mais evidentemente ainda, que na dum
triângulo está compreendido serem os seus três ângulos iguais a dois rectos, ou
na esfera serem todos os seus pontos equidistantes do centro; e que, por
conseguinte, é pelo menos tão certo como qualquer demonstração de geometria
que Deus, que é esse ser perfeito, é ou existe.
Descartes, Discurso do Método, Sá da Costa
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