Edward Hopper
A lógica é muitas
vezes encarada como uma atividade fria, cerebral e oposta às vivências humanas
mais cândidas, entre as quais se contam a amizade. Penso que esta perspetiva
das coisas trai uma incompreensão tanto da lógica como da amizade. É o que tentarei
mostrar nestas linhas.
Segundo a
perspetiva acima apresentada, a lógica é uma atividade racional por
excelência, ao passo que a amizade é algo que está do lado do sentimento e da
emoção, escapando por isso aos limites da racionalidade e consequentemente da
lógica. Começa-se a desconfiar que há algo de errado com esta perspectiva
quando se compreende que a capacidade dos seres humanos para avaliar argumentos
(uma actividade lógica, portanto) é influenciada pelas condições emocionais em
que as pessoas se encontram. Se as pessoas estão apressadas ou irritadas, têm
tendência para aceitar argumentos falaciosos como se fossem bons argumentos. Se
as pessoas se sentem bem, têm tendência para avaliar melhor os argumentos que
lhes são apresentados. Assim, parece que a lógica e as emoções não são
universos paralelos, mas antes aspectos da experiência humana que se
influenciam entre si.
Avaliar e discutir
argumentos é, na verdade, uma das tarefas humanas por excelência. Os nossos
antecessores tinham de decidir: será melhor ir caçar para Norte ou para Sul?
Que razões há para ir para Norte? E hoje reflectimos: será aceitável a prática
do aborto, ou deverá ser proibida? Será aceitável discriminar negros, mulheres
e pessoas de outras religiões que não a da maioria da população? Para cada uma
destas perguntas, há duas formas de lhe responder: com cuidado e seriedade, com
a desapaixonada paixão da lógica e da racionalidade, procurando o mais
razoável; ou apressadamente e sem olhar às consequências desagradáveis, sem qualquer
imparcialidade, procurando apenas maximizar os nossos interesses pessoais, ou
os do nosso grupo, com a paixão cega da emoção selvagem. Pensar que a lógica e
a racionalidade é algo que nos desumaniza parece, pois, uma falsidade sem
fundamento. O que nos desumaniza é usar a racionalidade para fins irracionais,
é argumentar falaciosamente a favor do irrazoável, apelando aos instintos
irreflectidos da multidão, manipulando as pessoas e não lhes dando oportunidade
para pensar serenamente.
A lógica não é incompatível
com a amizade. Mas, mais do que isso, 1) a lógica pressupõe e gera amizade, e
2) a amizade exige-nos lógica. Comecemos por 1: a lógica pressupõe a amizade
porque sem a disposição afável que resulta da amizade temos mais dificuldade em
avaliar correctamente os argumentos e ideias alheias. Se não nutrirmos qualquer
amizade pelas pessoas ou pelas ideias, a avaliação crítica dos argumentos
dessas pessoas ou dos fundamentos dessas ideias terá tendência para ser
apressada, redutora, cega e falaciosa. Teremos tendência para atacar homens de
palha, que são meras caricaturas das ideias em discussão. E isso será um
obstáculo ao desenvolvimento de ideias melhores. Quando lemos ideias com as
quais discordamos veementemente temos tendência para ser mais injustos na nossa
avaliação se não conhecermos pessoalmente ou se não nutrirmos amizade, ou pelo
menos respeito, pelo autor ou autora dessas ideias.
Além disso, a lógica
gera amizade porque ao avaliar cuidadosamente os argumentos alheios contactamos
com uma parte importante da humanidade dos outros: a sua capacidade para
pensar. Temos uma tendência natural para gostar de quem apresenta um pensamento
honesto, límpido, aberto à crítica, e para nos afastarmos de quem usa os
recursos do pensamento desonestamente, para manipular os outros, fechando-se em
si mesmo e nunca se oferecendo à crítica alheia, apresentando-se falaciosamente
como a Última Palavra ou a Verdade Absoluta.
Quanto a 2, a
amizade exige lógica porque …
Continua aqui : Crítica: Lógica e Amizade (texto de Desidério Murcho)
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