quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Lógica e Amizade



Edward Hopper

A lógica é muitas vezes encarada como uma atividade fria, cerebral e oposta às vivências humanas mais cândidas, entre as quais se contam a amizade. Penso que esta perspetiva das coisas trai uma incompreensão tanto da lógica como da amizade. É o que tentarei mostrar nestas linhas.

Segundo a perspetiva acima apresentada, a lógica é uma atividade racional por excelência, ao passo que a amizade é algo que está do lado do sentimento e da emoção, escapando por isso aos limites da racionalidade e consequentemente da lógica. Começa-se a desconfiar que há algo de errado com esta perspectiva quando se compreende que a capacidade dos seres humanos para avaliar argumentos (uma actividade lógica, portanto) é influenciada pelas condições emocionais em que as pessoas se encontram. Se as pessoas estão apressadas ou irritadas, têm tendência para aceitar argumentos falaciosos como se fossem bons argumentos. Se as pessoas se sentem bem, têm tendência para avaliar melhor os argumentos que lhes são apresentados. Assim, parece que a lógica e as emoções não são universos paralelos, mas antes aspectos da experiência humana que se influenciam entre si.
Avaliar e discutir argumentos é, na verdade, uma das tarefas humanas por excelência. Os nossos antecessores tinham de decidir: será melhor ir caçar para Norte ou para Sul? Que razões há para ir para Norte? E hoje reflectimos: será aceitável a prática do aborto, ou deverá ser proibida? Será aceitável discriminar negros, mulheres e pessoas de outras religiões que não a da maioria da população? Para cada uma destas perguntas, há duas formas de lhe responder: com cuidado e seriedade, com a desapaixonada paixão da lógica e da racionalidade, procurando o mais razoável; ou apressadamente e sem olhar às consequências desagradáveis, sem qualquer imparcialidade, procurando apenas maximizar os nossos interesses pessoais, ou os do nosso grupo, com a paixão cega da emoção selvagem. Pensar que a lógica e a racionalidade é algo que nos desumaniza parece, pois, uma falsidade sem fundamento. O que nos desumaniza é usar a racionalidade para fins irracionais, é argumentar falaciosamente a favor do irrazoável, apelando aos instintos irreflectidos da multidão, manipulando as pessoas e não lhes dando oportunidade para pensar serenamente.
A lógica não é incompatível com a amizade. Mas, mais do que isso, 1) a lógica pressupõe e gera amizade, e 2) a amizade exige-nos lógica. Comecemos por 1: a lógica pressupõe a amizade porque sem a disposição afável que resulta da amizade temos mais dificuldade em avaliar correctamente os argumentos e ideias alheias. Se não nutrirmos qualquer amizade pelas pessoas ou pelas ideias, a avaliação crítica dos argumentos dessas pessoas ou dos fundamentos dessas ideias terá tendência para ser apressada, redutora, cega e falaciosa. Teremos tendência para atacar homens de palha, que são meras caricaturas das ideias em discussão. E isso será um obstáculo ao desenvolvimento de ideias melhores. Quando lemos ideias com as quais discordamos veementemente temos tendência para ser mais injustos na nossa avaliação se não conhecermos pessoalmente ou se não nutrirmos amizade, ou pelo menos respeito, pelo autor ou autora dessas ideias.

Além disso, a lógica gera amizade porque ao avaliar cuidadosamente os argumentos alheios contactamos com uma parte importante da humanidade dos outros: a sua capacidade para pensar. Temos uma tendência natural para gostar de quem apresenta um pensamento honesto, límpido, aberto à crítica, e para nos afastarmos de quem usa os recursos do pensamento desonestamente, para manipular os outros, fechando-se em si mesmo e nunca se oferecendo à crítica alheia, apresentando-se falaciosamente como a Última Palavra ou a Verdade Absoluta.

Quanto a 2, a amizade exige lógica porque …

Continua aqui : Crítica: Lógica e Amizade      (texto de Desidério Murcho)

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