sexta-feira, 27 de junho de 2014

Abrigos e refúgios



Estamos no mês de Fevereiro de 2022 e o mundo faz o balanço dos prejuízos causados pela guerra nuclear que rebentou no Médio Oriente em finais do ano passado. O nível global de radioactividade neste momento e nos próximos oito meses é tão elevado que só quem vive em abrigos atómicos pode ter esperança de sobreviver num estado de saúde razoável.
Para os restantes, que têm de respirar ar não filtrado e consumir alimentos e água com elevados níveis de radiação, as perspectivas são terríveis. É provável que 10% morra nos próximos 2 meses de doenças provocadas pela radiação; pensa-se que mais 30% irá desenvolver formas fatais de cancro nos cinco anos que se avizinham e mesmo os restantes terão taxas de cancro 10 vezes superiores ao normal, enquanto o risco dos filhos nascerem com mal formações é 50 vezes maior do que antes da guerra.


Os afortunados, é claro, são aqueles que tiveram a precaução e a possibilidade de comprar um lote nos abrigos construídos pelos especuladores imobiliários quando as tensões internacionais começaram a crescer em finais de 2010. A maioria destes abrigos foi concebida como aldeias subterrâneas, cada uma com acomodação e mantimentos suficientes para as necessidades de 10 000 pessoas durante 20 anos. As aldeias são autónomas, com constituições democráticas que foram previamente acordadas. Possuem também sistemas de segurança sofisticados que permitem admitir no abrigo quem muito bem entenderem e manter de fora todos os restantes.

A notícia de que não será necessário ficar nos abrigos durante muito mais de 8 anos foi naturalmente saudada com alegria pelos membros de uma comunidade subterrânea chamada Porto Seguro. Mas também levou aos primeiros desacordos sérios entre eles. Por cima da galeria que conduz a Porto Seguro há milhares de pessoas que não investiram num abrigo. Essas pessoas são vistas e ouvidas por meio de câmaras de televisão instaladas à entrada. Imploram que os deixem entrar. Sabem que se forem rapidamente acolhidos num abrigo, podem escapar à maioria das consequências da sua exposição prolongada à radiação. Ao princípio, antes de se saber quanto tempo passaria até ser seguro regressar ao exterior, estes pedidos não tinham qualquer eco no interior do abrigo. Agora, porém, cresceu o apoio à admissão de, pelo menos, uma parte deles. Como os mantimentos só precisam de durar 8 anos, chegarão para mais do dobro das pessoas presentes nos abrigos. A acomodação apresenta problemas ligeiramente maiores. Porto Seguro foi concebido para funcionar como estância de luxo enquanto não fosse necessária para uma emergência real e foi equipada com courts de ténis, piscinas e um grande ginásio. Se todos concordassem em manter a forma fazendo aeróbica na sala de estar da sua casa, seria possível obter espaço precário, mas adequado, para alojar todos aqueles que os mantimentos podem sustentar.

De modo que há agora no interior muitos apoiantes daqueles que ficaram de fora. Os extremistas, a que os seus opositores chamam “lamechas”, propõem que o abrigo admita mais 10 000 pessoas – todas as que podem esperar razoavelmente alimentar e alojar até se poder regressar em segurança ao exterior. Isso implica desistir de todo o luxo na alimentação e nas instalações.

Aos ”lamechas” opõem-se algumas pessoas que defendem que quem está no exterior são geralmente pessoas de baixa categoria, pois não tiveram suficiente capacidade de previsão ou riqueza para investir num abrigo; daí que, segundo afirmam, causarão problemas sociais no abrigo, provocando uma maior tensão na saúde, bem-estar e serviços de ensino e contribuindo para o aumento da criminalidade e da delinquência juvenil. A oposição à admissão de pessoas do exterior também é apoiada por um pequeno grupo que diz que seria uma injustiça para com aqueles que pagaram pelo seu lote no abrigo se outros que nada pagaram também beneficiassem. Estes adversários da admissão de pessoas do exterior estão bem organizados, mas são pouco numerosos; contam, porém, com um apoio considerável por parte de muitos que dizem apenas que adoram jogar ténis e nadar e que não estão dispostos a prescindir disso.

Entre os ”lamechas” e aqueles que se opõem à admissão de pessoas do exterior situa-se um grupo intermédio: aqueles que pensam, que, como acto excepcional de benevolência e de caridade, se devem admitir alguns, mas não tantos que degradem significativamente a qualidade de vida no abrigo. Propõe que se transforme ¼ dos campos de ténis em dormitórios e se disponibilize um pequeno espaço público que, seja como for, tem tido pouco uso. Deste modo, podem alojar-se mais 500 excluídos, que os ditos “moderados” pensam ser um número considerável, suficiente para provar que Porto Seguro não é insensível à situação dramática daqueles que tiveram menos sorte que os seus membros.

Realiza-se um referendo. Há 3 propostas: admitir 10 000 do exterior; admitir 500; não admitir nenhum. Em qual das propostas votaria o leitor?

                                                                    Peter Singer, Ética Prática, pags 269 -271


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