Estamos no mês de
Fevereiro de 2022 e o mundo faz o balanço dos prejuízos causados pela guerra
nuclear que rebentou no Médio Oriente em finais do ano passado. O nível global
de radioactividade neste momento e nos próximos oito meses é tão elevado que só
quem vive em abrigos atómicos pode ter esperança de sobreviver num estado de
saúde razoável.
Para os restantes, que têm de respirar ar não filtrado e
consumir alimentos e água com elevados níveis de radiação, as perspectivas são
terríveis. É provável que 10% morra nos próximos 2 meses de doenças provocadas
pela radiação; pensa-se que mais 30% irá desenvolver formas fatais de cancro
nos cinco anos que se avizinham e mesmo os restantes terão taxas de cancro 10
vezes superiores ao normal, enquanto o risco dos filhos nascerem com mal
formações é 50 vezes maior do que antes da guerra.
Os afortunados, é
claro, são aqueles que tiveram a precaução e a possibilidade de comprar um lote
nos abrigos construídos pelos especuladores imobiliários quando as tensões
internacionais começaram a crescer em finais de 2010. A maioria destes abrigos
foi concebida como aldeias subterrâneas, cada uma com acomodação e mantimentos
suficientes para as necessidades de 10 000 pessoas durante 20 anos. As aldeias
são autónomas, com constituições democráticas que foram previamente acordadas.
Possuem também sistemas de segurança sofisticados que permitem admitir no
abrigo quem muito bem entenderem e manter de fora todos os restantes.
A notícia de que não
será necessário ficar nos abrigos durante muito mais de 8 anos foi naturalmente
saudada com alegria pelos membros de uma comunidade subterrânea chamada Porto
Seguro. Mas também levou aos primeiros desacordos sérios entre eles. Por cima
da galeria que conduz a Porto Seguro há milhares de pessoas que não investiram
num abrigo. Essas pessoas são vistas e ouvidas por meio de câmaras de televisão
instaladas à entrada. Imploram que os deixem entrar. Sabem que se forem rapidamente
acolhidos num abrigo, podem escapar à maioria das consequências da sua
exposição prolongada à radiação. Ao princípio, antes de se saber quanto tempo
passaria até ser seguro regressar ao exterior, estes pedidos não tinham
qualquer eco no interior do abrigo. Agora, porém, cresceu o apoio à admissão
de, pelo menos, uma parte deles. Como os mantimentos só precisam de durar 8
anos, chegarão para mais do dobro das pessoas presentes nos abrigos. A
acomodação apresenta problemas ligeiramente maiores. Porto Seguro foi concebido
para funcionar como estância de luxo enquanto não fosse necessária para uma
emergência real e foi equipada com courts de ténis, piscinas e um grande
ginásio. Se todos concordassem em manter a forma fazendo aeróbica na sala de
estar da sua casa, seria possível obter espaço precário, mas adequado, para
alojar todos aqueles que os mantimentos podem sustentar.
De modo que há agora
no interior muitos apoiantes daqueles que ficaram de fora. Os extremistas, a
que os seus opositores chamam “lamechas”, propõem que o abrigo admita mais 10
000 pessoas – todas as que podem esperar razoavelmente alimentar e alojar até
se poder regressar em segurança ao exterior. Isso implica desistir de todo o
luxo na alimentação e nas instalações.
Aos ”lamechas” opõem-se
algumas pessoas que defendem que quem está no exterior são geralmente pessoas
de baixa categoria, pois não tiveram suficiente capacidade de previsão ou
riqueza para investir num abrigo; daí que, segundo afirmam, causarão problemas
sociais no abrigo, provocando uma maior tensão na saúde, bem-estar e serviços
de ensino e contribuindo para o aumento da criminalidade e da delinquência
juvenil. A oposição à admissão de pessoas do exterior também é apoiada por um
pequeno grupo que diz que seria uma injustiça para com aqueles que pagaram pelo
seu lote no abrigo se outros que nada pagaram também beneficiassem. Estes
adversários da admissão de pessoas do exterior estão bem organizados, mas são
pouco numerosos; contam, porém, com um apoio considerável por parte de muitos
que dizem apenas que adoram jogar ténis e nadar e que não estão dispostos a
prescindir disso.
Entre os ”lamechas”
e aqueles que se opõem à admissão de pessoas do exterior situa-se um grupo
intermédio: aqueles que pensam, que, como acto excepcional de benevolência e de
caridade, se devem admitir alguns, mas não tantos que degradem
significativamente a qualidade de vida no abrigo. Propõe que se transforme ¼
dos campos de ténis em dormitórios e se disponibilize um pequeno espaço público
que, seja como for, tem tido pouco uso. Deste modo, podem alojar-se mais 500
excluídos, que os ditos “moderados” pensam ser um número considerável,
suficiente para provar que Porto Seguro não é insensível à situação dramática
daqueles que tiveram menos sorte que os seus membros.
Realiza-se um
referendo. Há 3 propostas: admitir 10 000 do exterior; admitir 500; não admitir
nenhum. Em qual das propostas votaria o leitor?
Peter Singer, Ética Prática, pags 269 -271
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