Picasso, Guernica
Os que o afirmam
baseiam-se num estudo superficial da fisionomia do século que está a acabar:
duas terríveis guerras de alcance mundial com milhões de vítimas, secundadas
por centenas de conflitos menores, mais localizados mas não menos destrutivos;
a concretização de totalitarismos ideológicos que justificaram com inumana
eficácia o extermínio de camadas sociais da população civil e mesmo de etnias
inteiras; também se patentearam os campos de concentração, armas de destruição
maciça com um alcance nunca antes sonhado na bem nutrida história da
criminalidade política; apesar do desenvolvimento industrial e tecnológico, um
terço da população mundial padece de fome, em muitos países latino-americanos é
tristemente comum o abandono e assassínio de crianças, e inclusive nas nações
mais desenvolvidas há grandes bolsas de miséria urbana e as agressões ao nosso
meio ecológico fazem recear graves perigos para a vida humana no futuro
próximo; se a tudo isto se acrescentaria os frequentes casos de corrupção
política e económica que envilecem as democracias, a barbárie dos confrontos
nacionalistas ou das perseguições xenófobas, etc., é inevitável concluir que o
século XX, como assegura o famoso tango, “é um prodígio de maldade insolente” e
que nele as invocações éticas parecem tão pouco adequadas como as gargalhadas
num funeral.
Contudo esta linha
argumentativa comete um erro básico de exposição. Parece dar-se por evidente
que o discurso ético só é pertinente onde o respeito pelos princípios morais é
maioritário e evidente. O que, claro está, nunca
aconteceu. O mundo em que viveram Aristóteles, Espinosa ou Kant não era menos
propenso às atrocidades que o nosso, apesar das limitações técnicas e do
caráter elementar das comunicações (do ponto de vista da nossa opinião contemporânea)
o seu alcance espetacular. A exigência ética sempre esteve em dramática minoria
perante a realidade histórica maioritária. Nunca foi a voz do dominante, do
realmente já realizado, mas a demanda por vezes soterrada e por vezes queixosa
que se opõe ao que é supostamente inevitável. Tanto a sua dignidade como a sua
urgência provêm dessa dissidência, de ser a articulação crítica de certo
inconformismo não partidista.
Reservar a pertinência da palavra moral para um mundo já absolutamente
moralizado equivaleria a desnaturalizar e castrar a sua proposta, que é tensão
e alarme perante o que é simplesmente dado. O empenho ético está sempre a
começar de novo: nunca se reifica no
garantido. Se há algum acento triunfal no seu tom não é como o grito de
vitória mas como encorajamento à resistência.
(...)
(...)
Ouve-se repetir
incessantemente o tópico da “crise dos valores”. Mas o que acaba por ser
autenticamente valioso nos valores é o seu sempiterno estado crítico, a estimulante chaga que se mantém aberta entre o
que se consegue e o que se merece, entre o que é e o que queríamos que fosse.
Os valores não desaparecem por não se cumprirem as melhores aspirações, mas
pelo esquecimento da própria aspiração: mas o lamento em torno da “crise” ou da
“morte” dos valores indica que eles continuam vivos e ativos. O que seria
realmente inquietante é que algum dia se chegasse a pensar que os valores já
triunfaram, que se estabeleceram de modo inapelável. Esta homenagem satisfeita
é que seria póstuma…
Fernando Savater, O Conteúdo da Felicidade
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