sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Viveremos tempos especialmente inóspitos para a ética?


Picasso, Guernica

Os que o afirmam baseiam-se num estudo superficial da fisionomia do século que está a acabar: duas terríveis guerras de alcance mundial com milhões de vítimas, secundadas por centenas de conflitos menores, mais localizados mas não menos destrutivos; a concretização de totalitarismos ideológicos que justificaram com inumana eficácia o extermínio de camadas sociais da população civil e mesmo de etnias inteiras; também se patentearam os campos de concentração, armas de destruição maciça com um alcance nunca antes sonhado na bem nutrida história da criminalidade política; apesar do desenvolvimento industrial e tecnológico, um terço da população mundial padece de fome, em muitos países latino-americanos é tristemente comum o abandono e assassínio de crianças, e inclusive nas nações mais desenvolvidas há grandes bolsas de miséria urbana e as agressões ao nosso meio ecológico fazem recear graves perigos para a vida humana no futuro próximo; se a tudo isto se acrescentaria os frequentes casos de corrupção política e económica que envilecem as democracias, a barbárie dos confrontos nacionalistas ou das perseguições xenófobas, etc., é inevitável concluir que o século XX, como assegura o famoso tango, “é um prodígio de maldade insolente” e que nele as invocações éticas parecem tão pouco adequadas como as gargalhadas num funeral.

Contudo esta linha argumentativa comete um erro básico de exposição. Parece dar-se por evidente que o discurso ético só é pertinente onde o respeito pelos princípios morais é maioritário e evidente. O que, claro está, nunca aconteceu. O mundo em que viveram Aristóteles, Espinosa ou Kant não era menos propenso às atrocidades que o nosso, apesar das limitações técnicas e do caráter elementar das comunicações (do ponto de vista da nossa opinião contemporânea) o seu alcance espetacular. A exigência ética sempre esteve em dramática minoria perante a realidade histórica maioritária. Nunca foi a voz do dominante, do realmente já realizado, mas a demanda por vezes soterrada e por vezes queixosa que se opõe ao que é supostamente inevitável. Tanto a sua dignidade como a sua urgência provêm dessa dissidência, de ser a articulação crítica de certo inconformismo não partidista. Reservar a pertinência da palavra moral para um mundo já absolutamente moralizado equivaleria a desnaturalizar e castrar a sua proposta, que é tensão e alarme perante o que é simplesmente dado. O empenho ético está sempre a começar de novo: nunca se reifica no garantido. Se há algum acento triunfal no seu tom não é como o grito de vitória mas como encorajamento à resistência.
(...)

Ouve-se repetir incessantemente o tópico da “crise dos valores”. Mas o que acaba por ser autenticamente valioso nos valores é o seu sempiterno estado crítico, a estimulante chaga que se mantém aberta entre o que se consegue e o que se merece, entre o que é e o que queríamos que fosse. Os valores não desaparecem por não se cumprirem as melhores aspirações, mas pelo esquecimento da própria aspiração: mas o lamento em torno da “crise” ou da “morte” dos valores indica que eles continuam vivos e ativos. O que seria realmente inquietante é que algum dia se chegasse a pensar que os valores já triunfaram, que se estabeleceram de modo inapelável. Esta homenagem satisfeita é que seria póstuma…

                                                                         Fernando Savater, O Conteúdo da Felicidade

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