domingo, 27 de outubro de 2013

Acontecimentos e Ações


Edward Hopper
Suponhamos que apanhei o comboio e paguei o meu respectivo bilhete. Durante o  percurso vou distraído, pensando nas minhas coisas, sem me dar conta de que brinco  com o pedacito do cartão, enrolo-o e desenrolo-o, até que finalmente o atiro descuidadamente pela janela aberta. Nessa altura aparece-me o cobrador e pede-me o bilhete: desespero e provavelmente a multa. Posso apenas murmurar para me desculpar: " Atirei-o da janela...sem me aperceber." O revisor, que é também um pouco filósofo, comenta: "Bom, se não se apercebeu do que estava do que estava a fazer, não pode dizer que o tenha atirado pela janela. É como ele tivesse caído".

Mas eu não estou disposto a aceitar essa restrição: "Desculpe, mas uma coisa é que me tenha caído o bilhete e outra tê-lo atirado, mesmo que o tenha feito inadvertidamente." Parece que esta discussão agrada mais ao revisor do que multar-me: " Veja, "deitar fora" o bilhete é uma ação, algo diferente de que nos caia, que é apenas uma dessas coisas que acontecem. Quando alguém faz uma ação é porque uma dessas coisas que acontecem. Quando alguém faz uma ação é porque quer fazê-la, não é verdade? Mas em contrapartida as coisas acontecem sem querer. De maneira que como você quis atirar o bilhete podemos dizer que na realidade ele lhe caiu.". Revolto-me contra esta interpretação mecanicista: "Não e não! Poderíamos dizer que o bilhete me tinha caído se eu tivesse adormecido, por exemplo, ou até se uma rabanada de vento mo tivesse atrancado da mão. Mas eu estava bem acordado, não fazia vento e o que acontece é que atirei o bilhete sem querer." "Basta disse o revisor riscando o seu caderno com um lápis -, E se não o quis fazer, como é você sabe que foi você, exactamente você, quem atirou? Porquê "atirar" uma coisa é fazer uma coisa e ninguém pode fazer uma coisa se não quiser fazê-lo." "Pois sabe o que lhe digo? Atirei a porcaria do bilhete porque me deu na realíssima gana!"


A verdade que existe uma diferença entre o que simplesmente me acontece (viro um copo com um safanão na mesa ao ir buscar o sal), o que faço sem me dar conta e sem querer ( o belo do bilhete atirado pela janela), o que faço sem me dar conta mas segundo uma rotina adquirida voluntariamente (como meter os pés nos chinelos quando me levanto da cama meio adormecido) e o que faço apercebendo-me e querendo (atirar o revisor bruscamente pela janela para que vá buscar o bilhete). Parece que a palavra "ação" é uma palavra que apenas convém à última destas possibilidades. É evidente que ainda existem outros gestos difíceis de classificar mas que à partida parecem qualquer coisa menos "ações": por exemplo, fechar os olhos e levantar o braço quando alguém me atira alguma coisa á cara ou procurar algo a que me agarrar quando estou quase a cair. Não decididamente um "ação" é apenas o que eu não teria feito se não tivesse querido fazê-lo: chamo ação a um ato voluntário. O "finado" revisor tinha portanto razão...

Mas como podemos saber se uma ato é voluntário ou não? Porque talvez antes de o levar a cabo pondero entre várias possibilidades e finalmente decido-me por uma delas.
Claro que não é o mesmo "decidir-me a fazer algo" que "fazê-lo”. “Decidir-se" é por fim a uma deliberação mental sobre o que quero realmente fazer. Mas uma vez decidido, tenho ainda que fazer. O que decido é o objectivo ou fim da minha ação, mas talvez não a própria acção. Por exemplo decido apanhar o copo e estendo o braço para o apanhar. O que é que decidi realmente fazer; apanhar o copo ou estender o braço? E qual é a verdadeira ação: apanhar o copo ou estender o braço? Se estendo o braço e deixo fora o copo posso dizer que agi ou não ? Ou agi "a meias"? (...)
                                                                             Fernando Savater, As Perguntas da Vida

























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